+ ENERGIA - Expresso 16-11-2023 - Energia, lóbi e bombas de fragmentação
Miguel Prado
Jornalista
Energia, lóbi e bombas de fragmentação
Exclusivo Assinantes
16 novembro 2023
Num recente fim de tarde, uma luxuosa residência na Lapa recebia mais um evento diplomático. Entre canapés em bandejas e um pedaço de Tejo ao fundo, os convidados da Embaixada iam-se entretendo. Passavam três dias da demissão do primeiro-ministro e a crise política em Portugal não podia deixar de ser tema de conversa. Cruzamo-nos com um antigo gestor de uma empresa de energia e com um administrador de um fundo que investe em... energia. E agora? A música de fundo é agradável, mas as perspetivas são todas elas enevoadas. O Ministério Público investigou, suspeitou, buscou e interrogou. No final, e ainda vamos no princípio, pouco sobrou, além de um governo demissionário, e uma panóplia de dossiês em suspenso. Pensava na aceleração da transição energética? Pense de novo.
O inquérito do Departamento Central de Investigação e Ação Penal
começou em 2019 com uma denúncia por causa de um desentendimento
num negócio do lítio. Engordou no
ano seguinte com outra desavença numa promessa de negócio do hidrogénio.
E, algures mais tarde na fita do tempo, animou a vida dos
procuradores com as suspeitas de corrupção no multimilionário
projeto do centro de dados da Start Campus
em Sines. Prendeu-se o chefe de gabinete do primeiro-ministro, e o
alegado melhor amigo deste, e ainda um gestor, um advogado e um
autarca. Prenderam todos. E libertaram todos.
Com o impacto devastador de uma bomba de fragmentação, um inquérito do Ministério Público levantou amplas suspeições sobre a governação e a relação dos decisores políticos com os investidores privados. Disparou munições sobre um Governo, e mandou para os cuidados intensivos as medidas de descarbonização que estavam em marcha e agora terão de aguardar, num coma indeterminado, pela limpeza dos estilhaços e pelo regresso à vida normal.
Afinal, defendeu o juiz de instrução, não há, para já,
indícios suficientes para suspeitar de corrupção, ainda que
subsistam elementos para acreditar em tráfico de influência. Mas o
autarca suspeito de aceitar indevidamente uma vantagem, porque terá
pedido donativos para o município, afinal não é, de momento,
suspeito de coisa alguma. Isto não é sobre energia, mas também
é sobre energia.
No discreto evento diplomático de há dias, em Lisboa,
de que falávamos, era inevitável o tema da semana. Como
fica Portugal neste caos? Os investimentos avançam? Teremos leilão
para eólicas offshore? E o concurso para baterias? E a
licitação para projetos de hidrogénio verde e gases renováveis?
O gestor de um importante fundo de imediato torce o nariz: não há
condições para um leilão eólico. E um ex-gestor alerta: os
investidores ficam nervosos com imprevisibilidade. A crise política
precipitada pela Operação Influencer ameaça deixar o país em águas
de bacalhau durante mais de quatro meses. Junte-lhe mais um par de
meses para um novo executivo se ambientar. E
aí tem meio ano de uma economia pendurada, servida
de bandeja, um cocktail amargo de fim de tarde.
Isto não é sobre energia? Claro que é sobre energia. Um prometido leilão para projetos de hidrogénio ficou no congelador. Mas se falamos de projetos com um potencial verdadeiramente estruturante olhemos para o mar. Não há como acreditar que o prometido leilão eólico offshore se possa concretizar até ao primeiro trimestre do próximo ano. Na segunda-feira o ministro do Ambiente já adiantou que o Governo começará por licitar apenas direitos de ocupação do espaço marítimo (uma possibilidade que já aqui havíamos levantado). E esta quarta-feira o Governo revelou que na janela de manifestações de interesse assomaram 50 empresas. O Executivo prometeu namorar os pretendentes em janeiro. Mas pode um Governo em gestão avançar com um leilão desta natureza? O assunto, respondeu ao Expresso o Ministério do Ambiente, "está em avaliação".
O ambicioso plano para pôr o país no roteiro global das eólicas offshore arrisca ficar a marinar mais tempo do que o desejável. Não é que seja um drama. Sobreviveremos se não tivermos 2 gigawatts de eólicas no mar em 2030. O mundo não acaba se o país não conseguir 85% de eletricidade renovável no final desta década. E não ficaremos às escuras se não concretizarmos os 20,4 gigawatts de potência fotovoltaica nos próximos sete anos. Mas não tenhamos grandes ilusões: um Governo em gestão deixará a energia em standby durante meia dúzia de meses e isso é tudo menos bom para o processo de descarbonização em curso.
A Operação Influencer trouxe à tona velhas suspeitas sobre os lóbis da energia, recordando outras investigações, como a que em junho de 2017 levou a buscas na EDP, vindo a destapar o envolvimento da elétrica na preparação de legislação (que lhe dizia respeito), onze anos antes. Ou, como titulámos, no Expresso há seis anos, "o dia em que a EDP fez de Governo". Só que agora o Ministério Público investiga relações, contactos e contributos para peças legislativas bem mais recentes, com semanas e meses.
"Tráfico de influência e promiscuidade existem. E isso em alguns casos pode levar ao crime de corrupção", afirmava há dias José Pacheco Pereira na CNN Portugal. Mas dizia também outra coisa. "Li as escutas todas e se aquilo é motivo de crime… todos os governos desde o 25 de Abril podiam ser indiciados daquele tipo de crimes", referia o historiador, lembrando que a Operação Influencer é reveladora da perpetuação de "poderes informais" no país.
Com efeito, também no mundo da energia coabitam poderes formais e informais, reuniões em gabinetes e jantares fora deles, cartas ao Governo e recados pela imprensa. Grandes empresas e pequenos negócios sempre procurarão defender, tanto quanto possível, os caminhos para o seu próprio sucesso, influenciando, o melhor que consigam, as decisões políticas de cada legislatura. Caberá aos governantes gerir todo esse jogo de influência com habilidade, para garantir a prossecução do interesse público, sem perder de vista a legitimidade (e necessidade) de permitir o desenvolvimento do investimento privado. Aliás, é também para isso que servem os recursos dos gabinetes a pareceres do regulador da energia ou do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, ajudando a robustecer as decisões tomadas.
Já o dissemos noutro momento: a transição energética irá requerer avultadas somas de capital para que todos os projetos se concretizem. Só a aposta nas eólicas offshore, instalando 10 gigawatts de capacidade, deverá movimentar 40 mil milhões de euros. Boa parte dessa soma servirá para criar novas indústrias em Portugal, sobretudo nas áreas portuárias mais próximas da localização dos novos parques.
Esse potencial económico terá de ser devidamente ponderado, em conjunto com os custos e benefícios ambientais dessa aposta, e as consequências expectáveis do ponto de vista social, considerando os empregos que possam ser destruídos (o setor da pesca está particularmente preocupado) e os que serão criados. É um exercício multi-disciplinar, que obriga cada Governo a ouvir associações, empresas e cidadãos, com centenas de reuniões por ano. É lóbi? Faz parte de um saudável desenho de políticas e estratégias, independentemente de acontecer no recato de um gabinete, no conforto de um restaurante ou no intervalo de uma conferência. O lóbi existe. Tratá-lo com regras claras e promover uma maior transparência sobre a governação seria um passo acertado para evitar o clima de permanente suspeição sobre os negócios da descarbonização. Que existem, darão dinheiro a ganhar a quem investe, e, espera-se, dividendos ambientais importantes para os cidadãos em geral.
DESCODIFICANDO:
Eólica flutuante. É a designação genérica dada aos projetos de energia eólica cujas torres não assentam em estruturas fixas ao leito marinho, mas sim em plataformas ou equipamentos flutuantes (ainda que, naturalmente, ancorados, ou presos, ao fundo do mar). Há várias tecnologias flutuantes que têm sido desenvolvidas nos últimos anos (a estrutura Windfloat, que é usada no primeiro parque eólico offshore português, é apenas uma delas), sendo estas soluções apropriadas para localizações de maior profundidade, em que o uso de colunas fixas ao leito marinho é técnica e economicamente inviável. A opção por explorar parques a uma maior distância de terra no caso português implicará o recurso a eólica flutuante, dado o acentuado declive do leito marinho junto à costa.
Se tiver dúvidas, críticas,
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A próxima edição é a 30 de novembro. Até lá, continue a acompanhar
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